domingo, 26 de dezembro de 2010

A arte da Prudência

A Arte da Prudência
Ricardo do Vale



Quando eu soube da notícia de que 13 CAPS de diversas cidades se reuniriam para uma exposição artística eu tive uma epifania – é agora. Os sinais se encaixam, sim, "Deus" nos chama.
Começamos a ensaiar há duas semanas, após sete anos separados e com um membro trocado. Mas, apesar de tudo no entanto... Entre mantras de Krishna e músicas do Metallica, num Domingo à noite, o Potioritese volta a ensaiar. O processo criativo foi tão intenso que entrei em transe, e toquei com um objeto (que não identifiquei ainda) e a chave da casa.
Ali saíram duas músicas: Paraíso Transcendente e Suje a Xuxa. Os meus dois amigos saíram completamente eufóricos, e eu fui meditar.

E de repente surge a notícia: exposição de artes. Muitas cidades. Sim, claro, não pensei em fama, dinheiro, sucesso, mas o fato é que eu queria fazer algo prático e executar a minha Sabedoria em alguma coisa. Passei anos dando discursos sobre mudar o mundo ou mesmo fazer uma coisa, ainda que pequena, para ensinar algo a quem estava ao meu redor.
A hora chegara.

Na noite anterior, Lord Cronos e Atos Veda foram à minha casa ensaiar. Meu primeiro desejo foi iniciar uma exposição discursiva sobre uma obra de Hesse, no meio da rua no bairro dos Estados.
Mas eu queria fazer algo real em minha vida. Queria dar uma aula prática, porque eu passara 15 anos sofrendo, tagarelando sobre as injustiças sociais e a situação emocional das crianças no mundo de hoje.
Levei Cronos e Veda até a padaria. Quando atravessávamos a rua, eu sentei no meio da Avenida Principal, coloquei a obra de Hesse no chão, e comecei a tocar e cantar “Confortably Numb”. O cronômetro ia avançando – eu passaria um minuto ali. Os carros começaram a se desviar, e uma moto teve um freio brusco. O tempo parecia congelado. Atos Veda ria, e não chegou nem perto. Lord Cronos – que faz mestrado em Ciências da Computação – chegou, sentou, riu, mas saiu.
Eu passei um minuto exato ali.
Levantei-me, um carro buzinou ao meu lado, outro passou indignado.
Peguei o violão de Veda, entreguei-lhe e disse aos dois:
- Podem ir embora. Não estão prontos para amanhã.

Fui na lan House, entrei no Orkut, conversei com o rapaz sobre a situação do mundo atual. No MSN conversei com Bruno, que naquela noite adotara o nome de “Trilex+café+cigarro”. Vi que o cara queria desabafar, me despedi – queria ser normal um pouco, tinha ido longe demais.

No caminho de volta, estabeleci que Sete dias depois, no nascimento da Lua Nova, procuraria meus amigos e lhes contaria o sentido do ensinamento.

No dia seguinte, às 5 da manhã, eu estava na frente da casa de Atos Veda tocando “Comfortably Num”. Simplesmente bati palmas, acordei todo mundo e disse:
- Diga a Leandro que acorde pois temos compromisso.
Eu estava vestido de preto da cabeça aos pés, com um baby look.
Veda sai praticamente dormindo, diz “Você acha que vou tocar depois de ontem?”, pego em suas mãos, digo “Vem cá filho”, conto uma história mirabolante sobre o sábio Hamakrishna e praticamente obrigo o menino a fazer uma serenata na janela de Cronos.

Na janela de Cronos:
- Suje a Xuxa/Com seus belos pôneis/ e cantando/ ilariê/ surge....
- Toca baixo. (Cronos, que acorda).
- Perdoai-me por ontem, na verdade, apenas pela parte final.
- Não perdôo.
- Compreendo você. Eu...
- Mas é esquecível.
- Vinde. Tomaremos café lá em casa! – eu disse.

Num local enorme, com uma estrutura gigantesca, estava o antigo Potioritese. Veda usava óculos escuro, e fumava um Lucky Stike. Bebíamos água, numa mesa especial.
Quando vi aquilo tudo eu fiquei orgulhoso, mais por eles que por mim.
Porque minha intenção era outra.

Tocaríamos na hora do almoço. Até ali, entre exposições de arte que incluíam uma louca altamente obesa que recitava poesias transcendentais, eu e Veda trocamos de camisa, de roupa e tudo. Meu plano era confundir todo mundo.
Brinquei no parquinho infantil, passei por uma criança e disse “Eis o único sábio desse lugar!”, o menino olhou de soslaio e continuou a brincar de balanço, e pedi o mp3 de Veda.
Entro em novo transe.
Escutando Metallica em cima da casinha do escorrego, começo a me soltar, dançar, encontrar-me com o Eu Supremo.

Subimos no palco.
- Tem psiquiatras aqui?
Ninguém responde.
- Psicólogas? Ah queridas... Assistentes sociais... Quem aqui gosta da reforma psiquiátrica?
Apesar do silêncio das pessoas eu permanecia convicto de que estava executando a minha missão com sucesso.
Tocamos Suje a Xuxa. A reação da platéia não pode se definida. Alguns bateram palmas, mas a maioria parecia grelado naquilo se perguntando: Por quê?
A música termina e eu aplico a dinâmica: algumas pessoas iriam eleger quem era o bipolar dos três. E muitos responderam, colocando um número num papel. No final iria olhar: tudo foi empate.
Tocamos Fogo contra Fogo. Os pacientes entraram em estado de euforia completa, gritando “O Brasil é um país injusto!”. A diretora do CAPS veio e suspendeu tudo. Eu insisti.
- Só mais uma música... Tivemos tanto trabalho para ensaiar...
- Não Ricardo. Se isso continuar, os pacientes vão descompensar!
- Posso dar uma mensagem de agradecimento?
- Ricardo...
Ela fez um sinal, o cara do som liberou o microfone, e eu disse:
- A verdadeira sabedoria é tirar a roupa!

Eu e os meninos fomos buscar minha impressora no CAPS.
Toda a minha família estava acionada. “Sua mãe ficou branca quando recebeu a notícia”, me diria meu pai depois.
Diante da assistente social, fui convidado a ir a um posto em mangabeira tomar uma injeção para relaxar.

Diante do médico, penso: “Sim, o conheço. De outra encarnação”.
Ele explicava: não é uma questão de repressão. É equilibrar-se para viver em sociedade.
Eu olhava para ele. Cínico.

Na saída:
- Obrigado Doutor. Sabe, você não me é estranho. Estudou no IPEP?
- Não.
- No Objetivo?
- Sim.
- Então é isso.
- Eu tenho 29 também, sua idade. Talvez estudamos na mesma sala – disse Dr. Charles.
- Isso é possível.

O enfermeiro gentil aplicou em meu braço esquerdo uma injeção de Diazepam 10 mg.

Ligo para Cronos, depois de tudo. “Angel of Light, I See Your glory tonight, but you only bring darkness in my sooooooooooul”.

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