quinta-feira, 24 de novembro de 2011

"esta geração é Marx + Coca-Cola"

a antiga sociedade forçava os indivíduos a andarem na linha através das sanções físicas e morais. a estratégia era destruir o sujeito física, psíquica e sócio-politicamente. com o tempo, viu-se que isso reforçava a coerência dos grupos sob a mesma opressão. o cúmulo da insatisfação é o estopim das transformações. a verdade histórico-natural é que a violência talha a consciência dos sujeitos e unifica. isso é constitutivo do processo de hominização da espécie: tivemos de abrir mão da cognição difusa do animal. a raiz da própria educação é a violência - ainda que a da aparentemente simples meritocracia escolar e do "faça o que a tia pediu" - contra a inteligência difusa da criança; forçando-nos à perenidade das gratificações como cães bem comportados, só assim se produz a unidade do sujeito.

extraia do homem a melhor parte de sua inteligência aberta a todos os acontecimentos do mundo, adapte o que sobrou às necessidades atuais abstratas da máquina.

na maior parte das pessoas, o processo é incompleto, e essa é sempre a nossa esperança de liberdade. hoje, porém, e desde que a opressão mais evidente (e, por isso, mais capaz de ser confronta) foi obscurecida, isso torna-se cada vez mais frágil. a incompletude do processo abarca também a oportunidade da socialização viciada. sob as políticas de integração, a verdade atual da máquina revela-se: neutralizar as diferenças sob o discurso de "todos são diferentes". se todos são diferentes, todos são absolutamente iguais e podem ser perfeitamente substituídos com respeito à sua posição na sociedade.

o homem: imprima-lhe o selo do autenticamente classificado, voilà.

enquanto todo o jogo social consiste em tentar subtrair-se a essa generalização do indivíduo como mera função social, fazendo passar por "peculiares" distinções que não são senão triviais - o gosto, a opinião, as tatuagens, os cabelos, a qualidade do cocô (tem gente que até se orgulha de ter tido uma doença rara?), quantos livros possui em casa -, então eu me deparo com uma passagem que assegura a anterioridade da posição social em relação à disponibilidade do indivíduo em relação a si, isto é, sujeito emancipado. um sujeito que amadurecesse em relação a si mesmo, que realmente fosse senhor de si e pudesse dispor de si próprio substancialmente, não precisaria sequer reafirmar sua condição de sujeito, uma vez realizada. a finalidade, da emancipação do indivíduo em relação à totalidade social, deve abolir o meio, da subjetivação.

autotimorúmeno, ou aquele que estupra a si mesmo - a sociedade abusa da sua própria menoridade ao colocar o sujeito antes do indivíduo e ao explorar a subjetivação abstrata a partir de categorias e códigos gerais de linguagem e comportamento e das modalidades de reconhecimento subsequentes, que vão desde os pequenos grupos de "sujeitos" com afinidades banais em sua vivência social à totalidade demasiado coerente da sociedade ocidental. sua variedade topológica é variância, não brota do que é variado, senão o que é variado é-o de antemão como ponto de fuga da opressão concreta.

claro que, no contexto, compreendo que certa camada e setores da população alimentem e reproduzam uma mentalidade regressiva com respeito às possibilidades do indivíduo-em-sociedade, perfeitamente. mas eu fui mesmo "ao ponto", no que eu quis dizer: num mundo que quer esvaziar todos os meus particulares e substituir aquilo que me posiciona como sujeito como uma mera questão de variação estatística, ao dizer que acima de tudo eu lhe pertenço, eu prefiro ser qualquer coisa, menos aceite por esse mundo. hoje, o único direito de ser um sujeito que não se dissolva no funcionamento social, que insuportavelmente exige a colaboração de todos para a dissolução de todas as vivências reais da inteligência de cada um de seus membros, está em negar tudo aquilo que vier antes ou acima da sua experiência.

tikkun olam é a restituição do mundo - abandonar o navio, não porque ele esteja afundando, mas para afundá-lo. a desgraça que se deve olhar nos olhos, a que constantemente me refiro, é este paroxismo: tudo é integrado pra ser destruído no íntimo, toda a vida particular declinou em protocolo, e o mundo todo vibra sua unidade fantasma. fantasma porque o homem de carne morreu sob a função cibernética contemporânea, morreu sob o nauta social.

eu poderia ser absolutamente qualquer coisa nessa vida, menos integrado. eu citaria Hegel até, ainda que mudando tão agressivamente o contexto: "A liberdade de expressão é assegurada pelo caráter inócuo que ela adquire como resultado da estabilidade do governo".

isto é Marx e Coca-Cola, mas é tudo o que temos. e a verdade débil, frouxa e emporcalhada pela coerção à integração, mas a única que nos ficou como esperança de dias em que não precisaremos nos apegar à troca protocolar de misérias.

eu quero a minha expressão como um grito de horror, mesmo que seja um grito de horror ao vazio que a todo instante tenta me devolver às suas entranhas. eu posso demonstrar que há mais vazio e morte em minha garganta carente de vida que em qualquer fantasma da vida morta.


Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nascido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
Já me desenganei que de queixar-me
não se alcança remédio; mas, quem pena,
forçado lhe é gritar, se a dor é grande.
- Camões


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